Ernesto de Sousa (1921-1988) fez uma viagem ao Norte de África em Setembro e Outubro de 1962. Dela resultou um conjunto de crónicas que foram escritas para o Jornal de Notícias.
O título Cartas do Meu Magrebe revela uma estratégia discursiva interessante: por um lado o pronome possessivo reafirma o testemunho do viajante, por o outro o nome “cartas” relocaliza o género literário dos textos na epistolografia (embora se trate de crónicas).
A viagem estaria planeada para ir de Marrocos, passando pela Argélia, até à Tunísia mas, por contingências monetárias, este último país não chegou a ser visitado. Da Argélia o autor dirigiu-se a Manheim (Alemanha), via Marselha, onde apresentou a sua longa metragem D. Roberto. O autor envia uma carta desta cidade alemã em 15 de Outubro de 1962. O autor usou vários meios de transporte, nomeadamente à boleia. Os seus movimentos podem ser apontados com precisão porque no depósito 6 da Biblioteca Nacional de Lisboa, dito de Ernesto de Sousa, há vários documentos, na caixa 8, que se conservam sobre essa viagem:
A acreditação como jornalista é de 26 de Julho de 1962 passado pelo Jornal de Notícias. Há dois bilhetes da «Compagnie Auxiliaire de Transports ao Maroc», de 26 e 28 de Setembro, respectivamente os trajectos Mêknes a Fez e de Fez a Oudja. Tem um visto de entrada na Argélia de 5 de Outubro de 1962 passado em Rabat em 25 Setembro de 1962. Há um bilhete de viagem de «Alger a MRS» (Marselha), de 11 de Outubro de 1962 da “Compagnie Générale Transatlantique”, em 4ªclasse (também afirmado numa carta a Isabel do Carmo, sua companheira na época). O autor sai de África nesta data, enquanto a publicação das crónicas dura até 21 Abril de 1963, data da última crónica publicada no Jornal de Notícias. Por razões políticas as crónicas foram censuradas pelo Director, por serem contrárias aos interesses de Portugal tendo sido suspensa a sua publicação. Assim ficaram oito cartas inéditas.
Recentemente, em 2011, este conjunto de crónicas (éditas e inéditas) foi publicado por uma editora comercial.
A viagem em si de Ernesto de Sousa não é muito longa nem particularmente nova, o que é importante são as reflexões e observações que faz de um Magrebe recentemente independente da França e das observações que faz do contacto com uma cultura que é, aos portugueses, simultaneamente estranha e próxima.
É certo que os povos das sociedades que Ernesto visita e observa são simultaneamente observados e idealizados pelo autor. O seu olhar é o olhar possível de um pequeno viajante do século XX, profundamente enformado na cultura francesa, e, por isso, lendo o Magrebe com esses olhos. Apesar desses problemas de perspectiva, que afinal não são mais que o condicionamento histórico e cultural de cada observador que, portador do seu tempo e da sua cultura, tem um conjunto de preconceitos (no sentido tradicional e no sentido gadameriano do termo), que fazem com que esse mesmo observador só possa ver certas coisas, apesar disso o autor procura sobretudo observar e registar o que vê e vive. No entanto este viajante tem um olhar que procura o outro, procura entender o que vê no campo do outro. Por vezes, essa vontade de ver o outro, de compreender o outro até tem algum retoque lírico, de valorização positiva de todo e qualquer fenómeno que o levam a apreciar o que normalmente é desprezado e a encontrar uma certa pureza no outro. Há nas cartas uma tentação de gostar do diferente, uma valorização positiva do que nos é exótico.
O que é muito surpreendente nestes textos é serem profundamente contestatários ao regime de Salazar, sem nunca o serem abertamente; de serem anti-colonialistas, internacionalistas, abertos ao mundo, pacifistas, e, por isso, desconfortáveis para o regime que tinha encetado as guerras coloniais na África portuguesa de então. O que surpreende não é as suas crónicas terem sido censuradas e suspensa a sua publicação, o que surpreende é que tenham sido publicadas 17 sem alterações. Os testemunhos originais das crónicas publicadas mostram-nos que os textos que saíram no jornal foram pouco modificados, ou seja, que a Censura deixou passar estes 17 textos sem intervir. Por exemplo, referências a um livro de Frantz Fannon, Les Damnés de la Terre, que constitui um clássico nas lutas contra o poder europeu aparecem abertamente.
A última frase destas crónicas contém uma afirmação fortíssima de pacifismo, numa fórmula memorável: “só a paz é bela e divertida” (SOUSA, 2011: 125). Isto porque o autor visita uma Argélia revolucionária e que terá saído, à data, de uma guerra de libertação muito traumática. É uma frase que acidentalmente fecha este conjunto textual, porque ele foi interrompido não por vontade do seu autor, mas que resume muito do espírito livre e pacifista que o anima.
ALVES, Adalberto, 1995, Portugal, Ândalus e o Magrebe, um Contexto de Tolerância, Ed. Universitárias Lusófonas, Lisboa.
BOUNOU, Abdelmouneim, 1998, Relatos Portugueses de Viagens (1870 – 1996), A Imagem de Marrocos, (Antologia de Textos Portugueses, com introdução do autor, não inclui as crónicas de Ernesto de Sousa), Universidade Sidi Mohammed Ben Abdjellah e Centro Cultural Português de Marrocos, Rabat.
SOUSA, José Ernesto de, 2011, Cartas do Meu Magrebe, Tinta da China, Lisboa.
PIMPLOT, John, 1983, «A Revolução Argelina», in A Guerra no Mundo, Guerras e Guerrilhas desde 1945, Verbo, Lisboa.