Romance de viagem

Romance cujas acções decorrem de viagens, assumindo-se os protagonistas como viajantes. Um dos exemplos mais conhecidos na literatura portuguesa é o romance de Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (1846), envolvendo o enredo da maioria dos romances actos de viagem. Já Robinson Crusoe (1719), de Daniel Defe, um marco na história do romance inglês, assenta nas viagens, ‘conquistas’, investimento e naufrágio do protagonista. As intersecções entre o romance e a escrita de viagens foram  abordadas por Percy G. Adams na sua obra pioneira Travel Literature and the Evolution of the Novel (1983), estudo (juntamente com os restantes da bibiografia, infra) para o qual remetemos o leitor interessado.

Na era da globalizaçação, da inter/transculturalidade, a viagem e o estatuto de “transcultural” tornam-se temas recorrentes na ficção, com aconteceu com a  exploração e o investimento marítimo e imperial na literatura europeia desde do século XVI, bastando recordar a Peregrinação (publ. 1614), de Fernão Mendes Pinto, ou Os Lusíadas (1572), de Luís Vaz de Camões. O acto de viajar e o encontro-confronto com culturas Outras dão origem a vários fenómenos como o orientalismo, o exotismo (exoticização do Outro para o manipular), à relação  de poder por vezes desigual (master-servant), nomeadamente a colonial, à ecologia imperial (transformação de paisagens), e à criação de hetero- e auto-estereótipos analisados no âmbito dos estudos pós-coloniais, decoloniais, da antropologia e da imagologia. Esse retrato (e projecção) do Outro pode ser entendida à luz da afirmação de Pere Gifra-Adroher (15), no seu estudo Between History and Romance: Travel Writing on Spain in the Early Nineteenth Century, sobretudo no que diz respeito à história do espaço descrito (período muçulmano, religião, arquitectura gótica, sentimentalismo):

During the last decades of the eighteenth century and throughout most of the nineteenth-century Spain attracted the Western romantic imagination powerfully. Though anchored in economic and cultural stagnation, Spain offered to post-Enlightenment travelers the exoticism of its Oriental, medieval, and imperial past. A journey to Spain not only entailed a literal geographical progression but also a figurative voyage across different historical and cultural periods of that country, such as the Moorish domination and the Christian Reconquest (711-1492), the Golden Age (ca.1556-1700), and the recent Peninsular War (1808-1814)… Once and for all, Spain and Spaniards began to lose their invisibility, becoming more known and, to a certain extent, also commodified by the apparently innocent cultural channels that purported to represent them.

O romance de viagem, ao descrever, por exemplo, expedições do Grand Tour, ficcionaliza não apenas as paisagens visitadas, mas também a própria escrita de viagens, cujas estratégias e cujo discurso são mimetizados, quer recursos e ferramentas literárias com a descrição, a enumeração, a adjectivação,  comentário, a tradução cultural, a apreciação crítica, quer temáticas como a viagem em si, a alteridade, o dépaysement, os usos e costumes, a comunicação intercultural e o confronto cultural/religioso, bem como características epistemológicas, nomeadamente a função da obra como (suposta) representação realista (da realidade fora do texto) e como ficção (Adams 81-102). Aliás, Hunter (5, 58, 353) afirma que os primeiros romancistas tentaram:

capitalize on the contemporary popularity of travel books by suggesting the similarity of their wares. . .Few eighteenth-century novels stay in one place; even the ones. . .set wholly in Britain emphasize cultural comparisons between different regions or social groups that minister to similar curiosities. . .the novel is a product of serious cultural thinking about comparative societies and the multiple natures in human nature. . . similarity between novels and travel books consists mostly in their both being loosely constructed, capable of almost infinite expansion, and susceptible to a great variety of directions and paces. But just as important are the formal differences. Travel books almost never have or need a sense of closure, for example. Journeys in most travel books just end, they do not culminate in much of anything.

Já Bohls (97), ao estudar a relação entre o romance e a escrita de viagens no século XVIII, afirma que é impossível discutir o primeiro sem falar da viagem, pois é a expedição que é, muitas vezes, motor da acção de ficções como Robinson Crusoe, Gullliver’s Travels e Tristam Shandy, tendo inúmeros romancistas redigido também relatos de viagem, por exemplo Tour Round the Whole Island of Great Britain (1724–6), de Daniel Defoe, Journal of a Voyage to Lisbon (1754), de Henry Fielding, Travels Through France and Italy (1766), de Smollett, os diários de Beckford (1787–8), Journey through Holland and Germany (1795, de Radcliffe, entre inúmeros outros exemplos, como as narrativas de Mary Shelley. O acto de viajar e os espaços estrangeiros forçam, por exemplo, o romance inglês a representar e a comentar a noção de Britishness no período áureo do império através do encontro-confronto com o Outro, sendo muitos estudos dedicados às relações coloniais úteis também para analisar romances e escritos de viagem (Bohls 98). Aliás, em 1797, a revista Critical Review descrevia o final do século XVIII da seguinte forma: “this may be called the age of peregrination; for we have reason to believe, that the desire of seeing foreign countries never before so diffusively operated” (cit. em Turner 2).

O romance de viagem (travel novel) mimetiza, assim, inúmeras características e estratégias da antiga escrita de viagens, como aconteceu como Robinson Crusoe e romances portugueses influenciados por essa obra. É, aliás, difícil que existam romances sem viagem, mesmo que pequena, ou apenas mental.

Bibliografia

Adams, Percy G. Travel Writing and the Evolution of the Novel. Lexington: U P of Kentucky, 1983.

 

Bohls, Elizabeth. “Age of Peregrination: Travel Writing and the Eighteenth-Century Novel.” A Companion to Eighteenth-Century English Novel and Culture. Ed. Paula R. Backscheider e Catherine Ingrassia. Oxford: Blackwell, 2005. 97-116.

 

Hunter, J. Paul. Before Novels: The Cultural Contexts of Eighteenth-Century English Fiction. Nova Iorque: W. W. Norton, 1990.

 

Levin, Stephen M., The Contemporary Anglophone Travel Novel. Londres: Rooutledge, 2008.

 

Turner, Katherine. British Travel Writers in Europe 1750–1800. Aldershot: Ashgate, 2001.

 

Rogério Miguel Puga