O Tratado das Contradições e Diferenças de Costumes entre a Europa e o Japão (Tratado em que se Contêm muito Sucinta e Abreviadamente Algumas Contradições e Diferenças dos Costumes entre a Gente da Europa e Esta Província do Japão), do missionário e japonólogo jesuíta Luís Fróis*, é terminado em Junho de 1585, em Katsusa (Canzusa, na ilha de Kyushu), já o autor vivia há mais de duas décadas no Japão. A obra retrata comparativamente (com mais de 600 exemplos) os usos e costumes, bem como as idiossincrasias, dos portugueses e dos japoneses, que o autor considera igualmente ‘civilizados’. O documento histórico apresenta, assim, um cariz (proto-)etnográfico e assume-se como uma obra ímpar no século XVI, embora tivesse circulado sobretudo no circuito restrito da Companhia de Jesus até ser publicada em meados do século XX, após o manuscrito ter sido ‘encontrado’ na Real Academia da História, em Madrid. O texto foi publicado em Portugal, pela primeira vez, em 1993, pela Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses (Europa Japão: Um Diálogo Civilizacional no Século XVI, ed. José Manuel Garcia, fixação de texto e notas de Raffaella D’Intino), e, posteriormente, em 2001, pelo Instituto Português do Oriente, em Macau, com edição de texto de Rui Loureiro. O Tratado foi também traduzido para inglês, em 2004 , por Robin D. Gill, e, em 2014, surge a primeira edição crítica inglesa, publicada por Richard K. Danford, Robin D. Gill e Daniel T. Reff (The First European Description of Japan, 1585, Routledge), sendo o texto de Fróis, em Portugal, há muito, quer objecto de estudo de vários trabalhos, nomeadamente dissertações e teses, quer um tema ficcional, nomeadamente no romance histórico O Samurai Negro (2016), de João Paulo Oliveira e Costa, em que Fróis é personagem histórica, tal como os jovens embaixadores japoneses que, em 1582, partiram rumo à Europa. O Tratado dialoga intertextualmente com o índice e com o capítulo primeiro da História do Japão, do mesmo autor, que apresenta uma história da missionação do Japão, sendo ambos obras ímpares da japonologia europeia. Existem várias traduções japonesas, chinesas, francesas (1993, 2009, com prefácio de Claude Levi-Strauss) e espanholas anotadas do tratado terminado no mês de Junho de 1585, em Katsusa (Canzusa, na ilha de Kyushu), durante o apogeu da missão (religiosa e comercial) jesuíta no Japão, e cujo manuscrito não contém qualquer título, o que talvez indique que a obra redigida, talvez com o apoio de Alessandro Valignano, não tivesse sido produzida para ser publicada, mas sobretudo para educar missionários; daí também o uso de inúmeros termos japoneses que não são traduzidos (natsu katabira, bozu, dobuqu, tabi, wataboshi, kubo, bikuni, byoby, tatami, danna, kogai, naginata, kogatana, hyakusho, urushi, hishaku, Yechizen, makura, kana, waza to, hashira, entre outros). Fróis tanto usa, amiúde, termos asiáticos, com traduz à letra vocábulos japoneses (p. 55), assumindo-se, assim, como tradutor cultural e linguístico. o manuscrito circulou no circuito restrito da Companhia de Jesus até ser publicado em meados do século XX, após ter sido ‘encontrado’, em 1949, na Real Academia da História, em Madrid, por Josef Franz Schütte, S. J. (que publicou uma tradução alemã, em 1955), e, na primeira linha do texto, lemos “tratado em que se contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças dos costumes entre a gente da Europa e esta província do Japão”, um resumo sucinto do que o leitor poderá encontrar ao longo da obra. A narrativa é dividida em várias secções e ocupa-se de temas, problemáticas e traços culturais como: vestuário, arquitectura, armamento, urbanismo, música, usos e costumes, teatro, construção naval e navegação, educação de crianças, fauna (cavalos) e flora, arte da guerra, escrita e literatura, género (gender), medicina, religião e culinária, ente outros. O exercício de comparação intercultural entre a elite do Japão (“os japões”, “eles”) e a de Portugal e da Europa do Sul (“nós”, o público-leitor implícito na obra) elaborado ao longo de 14 capítulos é sobretudo descritivo, sem juízos de valor e coloca os dois países ao mesmo nível, havendo igualdade entre ambas as culturas relativizadas. Fróis, que estava, então, há mais de 20 anos no Japão, evita a exoticização desnecessária do Outro ao longo das mais de 600 entradas do tratado contrastivo. A curiosa e pioneira obra de Fróis é de fácil leitura e apresenta a cultura e o quotidiano nipónicos através do filtro selectivo (e, logo, do ponto de vista) de um missionário jesuíta luso do século XVI, adquirindo um cariz proto-etnográfico, pelo que se trata de uma obra ímpar em termos históricos e antropológicos, na qual o Self cultural se torna também Outro, através de um interessante e informado jogo de espelhos que se demora em inesperados e desconhecidos detalhes do quotidiano e dos espectáculo da alteridade. O Tratado, decerto, ajudaria os missionários recém-chegados a familiarizarem-se com o Japão, esbateria choques culturais e permitir-lhes-ia olhar para a sua própria cultura e actividade religiosa através do ponto de vista dos japoneses, estratégia deveras útil no âmbito da missionação; pelo que, por exemplo, no capítulo IX (“Das doenças, médicos e mezinhas”), Fróis esclarece: “entre nós queimam-se as postemas com fogo; os japões antes morrerão que usar dos nossos remédios ásperos da cirurgia” (90), e descreve, na primeira entrada do segundo capítulo, a ausência de moralidade e carga religiosa entre as mulheres japonesas, no que diz respeito à virgindade e ao casamento. Várias temáticas associadas ao género, à moral, à religião, ao estatuto social e religioso, ao comportamento adequado, aos costumes e às relações humanas vão sendo desenvolvidas de forma pragmática e neutral, cristalizando o documento vocábulos utilizados em Macau (derivados, por exemplo, do malaio), como pinga, ao descrever hábitos e trabalhos femininos inaceitáveis na Europa (p. 44). As três décadas em que o autor viveu no Japão (1562- 1597), permitiram-lhe observar directamente os japoneses, exercício aproximado ao trabalho de campo do actual etnógrafo, e partilhar, por escrito, as suas conclusões dessa ‘observação participante’, pautada pelo respeito, pela curiosidade, mas sobretudo pelo interesse de compreender os japoneses para mais facilmente os converter e facilitar a formação de um clero japonês, como também Valignano advogava; daí que o budismo seja das temáticas mais criticadas pelo religioso português. A comparação por (dis)semelhança é um artifício literário e uma ferramenta essencial na escrita de viagens, quer para comparar usos e costumes, fauna e flora, paisagens, aromas (smellsacape) e sons (soundscape), quer para familiarizar o leitor europeu com objectos, produtos e seres estranhos que nunca viu, ouviu ou cheirou. Fróis regista, assim, as suas curiosidade e sabedoria de forma pragmática e utilitária ao comparar a sua cultura de origem à japonesa, tarefa pautada (nem que implicitamente) pelas retórica e estética do espanto tolerante.
O Tratado está dividido em 14 capítulos:
Capítulo I – Do que toca aos homens em suas pessoas e vestidos.
Capítulo II – Do que toca às mulheres e de suas pessoas e costumes.
Capítulo III – Do que toca aos meninos e a seus costumes.
Capítulo IV – No que toca aos bonzos e a seus costumes.
Capítulo V – Dos templos, imagens e cousas que tocam ao culto de sua religião.
Capítulo VI – Do modo de comer e beber dos japões.
Capítulo VII – Das armas ofensivas e defensivas dos Japões – e da guerra.
Capítulo VIII – Do que toca aos cavalos.
Capítulo IX – Das doenças, médicos e mezinhas.
Capítulo X – Do escrever dos Japões e de seus livros, papel e tinta e cartas.
Capítulo XI – Das casas, fábricas, jardins e frutas.
Capítulo XII – Das embarcações e seus costumes e dogus.
Capítulo XIII – Dos autos, farsas, danças, cantar e instrumentos de música de Japão.
Capítulo XIV – De algumas cousas diversas e extraordinárias que não se podem bem reduzir aos capítulos precedentes.
Bibliografia
Luís Fróis, Tratado das Contradições e Diferenças de Costumes entre a Europa e o Japão, edição de texto de Rui Manuel Loureiro, Lisboa: Livros de Bordo, 2019, 149 pp., ISBN: 978-989-98908-8-6.
Rogério Miguel Puga