Viagem literária

Viagem define-se genericamente como o acto de se deslocar de um ponto para outro, mais ou menos distante, por um período delimitado no tempo. A viagem, entendida neste sentido muito lato da palavra, é um dos motivos recorrentes na literatura. Há contudo que distinguir diferentes tipos de viagem em função do seu objectivo e motivações, duração, transporte utilizado e, até mesmo, das percepções do viajante quer sobre a realidade que observa quer sobre si próprio. No caso da viagem literária, o que a caracteriza é o facto de ser invariavelmente impulsionada pela leitura ou pelo conhecimento de um texto literário ou do autor desse texto. Na verdade, a arquitectura da viagem literária compreende um conjunto de elementos diversificados, intrínsecos a um lugar cuja teia de conexões consistentemente envolve o texto literário, os espaços e as personagens nele descritos e, eventualmente, os elementos biográficos do autor. Apesar de haver ocorrências anteriores, o grande impulsionador da viagem com motivação literária é o Grand Tour, expressão cunhada por Richard Lassels, em Voyage of Italy (1670), para designar uma viagem por alguns países europeus, nomeadamente França, Itália, Alemanha, Países Baixos e Suíça, realizada pelos jovens aristocratas do género masculino como forma de complementarem a sua educação. Apesar de ter origem no século XVI, o Grand Tour atingiu o seu auge no final do século XVII e no século XVIII, coincidindo com um interesse crescente pela biografia literária. Este facto poderá justificar que, numa fase inicial, a viagem literária fosse essencialmente uma peregrinação em direcção ao autor. Tanto a viagem literária como a biografia do autor promovem o culto da celebridade literária e, na verdade, verifica-se neste tipo de viajante um desejo claro e quase invasor de se aproximar tanto quanto possível do espaço do autor: de ver o que o autor viu, sentir o que sentiu, estar onde viveu, conhecer o sítio onde dormiu, onde escreveu, onde morreu e até onde foi sepultado. Na viagem literária busca-se, frequentemente, um encontro imaginário, uma espécie de comunhão com o autor com o intuito, mais ou menos consciente, de se ser associado ao seu génio (Robinson e Andersen, 2002: xiii). Trata-se, em grande medida, de uma forma de viagem com base na personalidade dos autores de textos literários que teve e tem um papel decisivo na preservação de um grande número de lugares literários ou mesmo na sua definição enquanto tal. São exemplos da preservação deste património as casas de autores transformadas em museus, como a Casa de Tormes, de Eça de Queirós, a Casa de Teixeira de Pascoaes, em Amarante ou a Casa de Camilo, em S. Miguel de Seide. De referir também as estátuas dos autores ou das suas personagens colocadas nos jardins e cafés, ou outros lugares a que são associados, como acontece com as estátuas de Barbosa du Bocage, na cidade de Setúbal, a de Fernando Pessoa, em Lisboa, ou a de António Aleixo, em Loulé. Para além disso, a criação das cidades da literatura da UNESCO ou, até mesmo, a criação de parques temáticos como o Quarteirão Jorge Amado, em Ilhéus, Brasil, ou o Dickens World, em Kent, Inglaterra, são testemunhos do crescente interesse internacional pelos lugares literários.

Se, num primeiro momento, a viagem literária teve o sentido de peregrinação estimulada pela figura do autor, posteriormente, é também motivada pelo desejo de conhecer os lugares reais e míticos associados ao texto, concretamente as paisagens desenhadas na página e/ou os percursos traçados pelas personagens literárias (Butler, 2000: 360). É com este tipo de aspirações, motivadas pela curiosidade ou profunda admiração, que muitos viajantes literários percorrem exaustivamente as ruas de uma determinada cidade em busca destes lugares. No início do século XXI, o encantamento pela figura do autor e a atracção pelos seus espaços privados são ainda mais que suficientes para definir o itinerário de uma viagem literária. No entanto, na actualidade, a viagem literária vai para além da figura do autor e pode realizar-se com o objectivo de percorrer os espaços descritos numa obra literária ou os passos de uma personagem. A viagem literária pode também consistir numa deslocação a um festival literário, como o Jaipur Literature Festival ou o Dublin Writers Festival ou, ainda, numa visita a bibliotecas e/ou livrarias famosas, como sucede de forma organizada na cidade de Nova Iorque, por exemplo. O itinerário destas viagens pode ser desenhado pelo visitante, mas frequentemente é criado por entidades como câmaras municipais, fundações ou universidades.

A viagem literária constitui deste modo uma forma de inversão da lógica que preside, por exemplo, à das narrativas de viagem. Ou seja, já não se trata necessariamente de uma viagem que precede e motiva a criação do texto, mas de uma viagem que, apesar de poder também resultar num texto, resulta do texto.

 

Bibliografia

Richard Butler, “Literary Tourism”. In Jafar Jafari, Encyclopedia of Tourism, 2000: 360.

Mike Robinson e Hans Christian Andersen, Literature and Tourism, 2002: xiii-xix.

 

Rita Baleiro e Sílvia Quinteiro