Uma mostra (não) representativa da performance arte portuguesa
A mostra bibliográfica e a mostra artística/documental da performance arte que se apresentam neste espaço têm o seu enquadramento específico no simpósio “Performance Arte Portuguesa: 2 ciclos para um arquivo”, a decorrer no anfiteatro do Museu Colecção Berardo de 20 a 22 de Julho de 2016.
Joga-se aqui com a questão da representatividade ou da não representatividade destas mostras, uma vez que todos estes documentos, fotografias ou vídeos são de alguma forma representativos de uma história que tem ficado oculta, são indícios que nos dão a ver aspectos particulares, fragmentários, mas que no seu conjunto permitem ir criando um retrato da performance arte portuguesa. Não deixam, contudo, de ser não representativos de uma história maior porque não estão contemplados aqui todos os nomes nacionais e internacionais que deram corpo a este campo singular, nem estão presentes documentos que nos dariam um retrato mais preciso.
Esta mostra mantém as características do que tem sido a construção desta história: fragmentação e dispersão. Esperamos, contudo, que seja um apontamento relevante para a a constituição de um arquivo futuro e da exposição que há-de vir sobre o contexto da performance portuguesa e das suas relações com o panorama internacional. Onde seja possível mostrar ou recriar os processos artísticos, os artistas, os festivais nacionais e internacionais, os variados registos fotográficos, em filme e vídeo e, também, os testemunhos dos próprios artistas, dos organizadores e dos seus públicos sob este património performativo português.
Neste retrato contempla-se o primeiro registo sobre o manifesto futurista internacional publicado em Portugal, apresentam-se diversos catálogos de festivais nacionais e internacionais de performance arte, documentos e fotos, assim como se apresentam fotos e vídeos de artistas de gerações e áreas diferentes que participam neste simpósio. Registam-se aqui os seus nomes: Ernesto de Melo e Castro, Manoel Barbosa, Albuquerque Mendes, Rui Orfão, Fernando Aguiar, António Olaio, Alexandra do Carmo, Rui Mourão, Rita Castro Neves, João Garcia Miguel, Paulo Mendes, Filipa César, Manuel Botelho, Susana Mendes Silva, Pedro Barateiro, Beatriz Albuquerque, Frederico Diniz, António Contador, Susana Chiocca, Fernanda Eugénio & Ana Dinger, Vânia Rovisco. Estes, por sua vez, trazem até nós nos seus registos artísticos e documentais, e nos seus testemunhos, outros artistas que participaram nesta história, tais como, Ernesto de Sousa, Ana Hatherly, João Vieira, Ana Borralho e João Galante, Miguel Pereira, entre muitos outros.
Cláudia Madeira, Julho de 2016
Artes Performativas Em Portugal: Breve Mostra Bibliográfica (Curadoria Manoel Barbosa)
A convite do Simpósio Internacional Performance Arte em Portugal, exibe-se neste espaço – e em função do mesmo – muito seleccionada bibliografia pertencente a Manoel Barbosa Performance Arte.Body Art Archives, sobre alguns dos principais eventos no âmbito das Artes Performativas em Portugal, com especial incidência porque foi intenção inicial, nos happenings e sobretudo performances, mas também na dança-performance.
Porque o Simpósio é accionado, dirigido por docentes universitários, e participado para além de performers, por estudantes, docentes, historiadores, público sem dúvida crescente e interessado, optou-se por mostrar cronologicamente e desde o Futurismo as primeiras acções performativas de Almada Negreiros (a génese), Santa Rita Pintor, passando naturalmente pelos Surrealistas, notando-se mais um hiato até aos happenings como tal assumidos, anunciados e executados por Ernesto Mello e Castro, Ana Hatherly, João Vieira, Ernesto de Sousa entre outros, marcantes momentos de rupturas, percursos e esticões estéticos, discursivos, no marasmo da arte, da cultura e da sociedade de então.
Doutro modo, com suportes e objectivos diferentes, surgiu a obra corporal e performativa de Helena Almeida, trabalho perfeito, magnífico, fulgurante, que impõe-se desde a década de 1960 e insere-se na História das artes performativas, da body art. Por tal, esta resumida mas especial e merecida mostra dum percurso entre e com performers.
Outra artista, outro discurso corporal: Lourdes Castro, que com Manuel Zimbro criaram uma obra relevante, peculiar com o Teatro de Sombras, estão obrigatoriamente presentes.
Mais notáveis artistas que usam o seu corpo (ou doutros) em actos performativos registados e exibidos em vídeo e fotografia, estão necessariamente mostrados. Neste âmbito, por coincidência temporal e no Museu Berardo (até Setembro) pode ver-se na exposição O Enigma—Arte Portuguesa na Colecção Berardo (curadoria de Pedro Lapa) quatro excelentes performers: Jorge Molder, João Tabarra e João Maria Gusmão/Pedro Paiva.
Nestes cerca de duzentos documentos (não sendo uma Mostra fotobibliográfica complementa-a com algumas fotografias), propicia-se uma breve análise da muito relevante arte performativa criada e executada por portugueses, e a apresentação no país de alguns dos mais destacados autores, coreógrafos, performers estrangeiros.
Está por historiar de modo isento, com atenta pesquisa e concreto conhecimento analítico as artes performativas em Portugal, embora Egídio Álvaro (principal impulsionador, promotor das artes performativas desde início da década de 1970 até inícios de 1990) tenha produzido vasta, indispensável e já histórica bibliografia.
Quem fizer esse trabalho historiográfico (e necessariamente fotobibliográfico) terá salutares surpresas, proporcionará inesperados mapeamentos territoriais, estéticos e discursivos, e prestará enorme contributo para (re)colocar de modo decisivo as artes performativas na História da arte portuguesa.
Destaca-se na Mostra e em espaços próprios, dois momentos que reprojectaram performers portugueses: o Symposium International d’Art Performance de Lyon (1979-1983, o mais importante evento de nível internacional até então, organizado e dirigido por Orlan e Hubert Besacier) e Performance Portugaise, no Centre Georges Pompidou, 1984, organizado por Egídio Álvaro.
Refira-se que outras obras de performers portugueses foram apresentadas em prestigiados museus, festivais, encontros, galerias em Paris, Nova Iorque, Londres, Berlin, Amesterdão, Madrid, Gent, Viena, Québec, Tóquio, ou Varsóvia, e mencionadas, analisadas em revistas como Flash Art, Art Forum, Art Press, inseridas em enciclopédias, livros sobre a história das artes performativas.
Noutra ocasião, preferencialmente em Portugal, se mostrará muito mais vasta e inédita, surpreendente bibliografia e fotobibliografia das Artes Performativas em Portugal.
Manoel Barbosa, Lisboa 2016
Mostra Artística /Documental (Curadoria Cláudia Madeira)
A cronologia não nos ajuda muito na definição do que é a performance arte portuguesa, segui-la serve apenas para construirmos uma ordem de acontecimentos que tem sempre outros acontecimentos ocultos ou invisibilizados ou a que se poderiam dar nomes diferentes. Ernesto de Sousa numa carta a Noronha da Costa, datada de 21 de Abril de 1982, referia-se à catalogação do “Encontro no Guincho-Rinchoa”, em 1969, como happening, considerando que melhor seria ter-lhe chamado performance porque esta noção eliminaria muitas das falências teóricas anteriores. E, por isso, afirmava: “julgo que alguma coisa do que fizemos do passado, os poetas experimentais, o João Vieira, eu com o Jorge Peixinho, contigo, etc. – teriam sido melhor classificadas de performances … Isto só tem importância porque a performance (do fr. Antigo: per formare), a performatividade, é conceito primordial na ciência e na estética dita pós-moderna”.
À problemática conceptual, sobre o que é e não é performance arte, têm-se juntado outras questões conflituantes em torno da ontologia da performance arte. Diversos autores nos estudos da performance têm adoptado perspectivas diferentes face ao posicionamento deste género híbrido e indefinido em torno das questões da representação ou da não representação, das artes plásticas e do teatro, da performance arte e da performance social, da efemeridade e da mediação, do estatuto documental ou teatral dos seus registos, dos “ciclos” e do “início” e do “fim” da performance, entre diversas outras questões. É claro que devemos procurar ser precisos a definir o que é performance arte, mas seguindo a linha de pensamento apresentada acima por Ernesto de Sousa, se olharmos para os registos de Música Negativa de Ernesto de Melo e Castro, apresentada pela primeira vez em 1965 no âmbito do Concerto e Audição Pictórica na Galeria Divulgação em Lisboa, podemos ver aí um happening, uma performance, uma vídeo-performance, uma performance para a câmara, ou um re-enactment, uma vez que o filme de 16mm a que temos acesso foi posteriormente registado em 1977 por Ana Hatherly. Já para não dizer que entre 1965 e 1977 Ernesto de Melo e Castro re-apresentou diversas vezes e em diversos contextos esta peça que simbolizava o silêncio imposto durante a ditadura portuguesa até 1974. E importa também referir que Melo e Castro não se define nem como artista plástico, nem como homem de teatro, mas antes como poeta experimental ou poeta visual, e foi a partir daí que criou esta e outras peças que podemos incluir hoje na história da performance portuguesa.
Por outro lado, ainda, Melo e Castro, numa entrevista a Ernesto de Sousa, registada em filme na Galeria Buchholz, em Dezembro de 1974, dará conta que esse “laboratório experimental saltou para a rua!”, levando o “povo” a subverter e a dar novos sentidos “artísticos” e “políticos”, por exemplo, aos sinais de trânsito. Nas suas palavras: “se muitos de nós poetas visuais antes do 25 de Abril nos dedicámos à experimentação laboratorial de certo modo fechada e hermética para o público foi porque o contexto antes do 25 de Abril estava desligado da criatividade dos homens e das mulheres”. Caminhando pelas ruas portuguesas da pós-revolução, Melo e Castro mostrava como a Revolução tinha aberto as portas à manifestação criativa do povo, o que se revelava nas inscrições que apareciam nas paredes e mesmo nos sinais de trânsito, como, por exemplo, um sinal de stop onde se acrescentou a palavra “ao fascismo”; a sigla do P.C.P. (Partido Comunista Português) que foi transformada em BOB (numa nova significação meramente sem sentido); ou ainda a sigla C.D.S. (Centro Democrático Social) em que o “S” é substituído por um $ (cifrão). Inscrições que pervertendo o seu significado unívoco e normativo ganharam uma assumida carga política.
Foi precisamente este ambiente de fusão da arte com o social que levou o historiador e crítico de arte João Pinharanda a caracterizar o 25 Abril como o primeiro exemplo de arte pública anti monumento em Portugal. Segundo este autor tratou-se de um momento de criação e participação colectiva: acção popular de rua que acompanhou a queda do regime, através de um processo simultâneo de destruição dos símbolos do regime (nomeadamente os símbolos escultóricos) e do levantamento alternativo de uma iconografia provisória nas ruas da cidade, constituída por pinturas, pichagens clandestinas, cartazes.
Se neste filme que será comentado no Simpósio pelo próprio Melo e Castro conseguimos ver algum do ambiente vivido nas ruas em 1974, por sua vez, na instalação sonora que Alexandra do Carmo criou para a Galeria Quadrum entre 2011-2012 temos acesso aos testemunhos, às memórias, dos agentes (performers, públicos, etc.) que circulavam nesta galeria para ver performance nas décadas de 1970 e 1980. Algumas dessas memórias nem sempre factuais ecoam na performance Caretos de João Vieira, de 1984, dando o título a esta instalação Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito) uma vez que este título teve origem na entrevista com Gracinda Candeias onde esta descreveu o animal presente na performance de João Vieira como sendo um cabrito, quando, na verdade, era uma burra como testemunhou depois Ana Isabel Rodrigues. A estas memórias juntam-se outras de diversas performances como as de Ana Hatherly, que conseguimos hoje ver numa pesquisa simples na internet como Rotura, de 1978 ou, ainda, em performances de artistas internacionais como A hot afternoon 3, de Gina Pane, também, de 1978.
Desse mesmo período temos o registo da passagem de performers portugueses por circuitos internacionais, como é o caso das fotos e vídeo da peça de António Olaio Il Faut Danser Portugal apresentada no Centre Georges Pompidou, em Paris, em 1984, no âmbito da mostra Performance Portugaise sob organização de Egídio Álvaro, dez anos após o 25 de Abril, mas por onde passaram também outros performers representados no simpósio como Manuel Barbosa, Albuquerque Mendes e Rui Órfão. Estes dois últimos desenvolveram um trabalho performativo que, diversas vezes, passou pelo ritual/ performance.
Estas performances cujo enquadramento temporal se situa entre meados dos anos 60 e 80 e por onde ecoa o ambiente da ditadura e da revolução portuguesa constituem um primeiro ciclo da história onde a performance arte ganhará este nome, e a partir do qual as experiências mais performativas dos futuristas, surrealistas e dos poetas experimentais serão re-catalogadas. A partir de 1990 e, especialmente, no novo milénio surgem novos trabalhos de artistas nem sempre, ou nem todos centrados na performance mas que fazem uso dela para dialogarem com a arquivo e repertório da performance social dos portugueses. Paulo Mendes incorporando a figura de Salazar em S de Saudade, desde 2007. Filipa César dando a ler num texto encenado palavras de Amilcar Cabral no âmbito de Mined Soil apresentado na Old School em 2014. No mesmo espaço Manuel Botelho tinha apresentado no ano anterior uma performance interpretada por si a Viagem Triunfal que o Presidente da República o Contra-Almirante Américo Tomás realizou à Província Ultramarina de Angola em 1963. Susana Mendes Silva tinha apresentando em 2012 no Colégio das Artes 69-12 para fazer ecoar de novo as palavras-de-ordem que se diziam nos movimentos estudantis em 1969 em Coimbra. Frederico Diniz tem enveredado por uma performance tecnológica que dialoga com a memória dos lugares e das gentes, nomeadamente da guerra colonial portuguesa, como é exemplo de Adeus até ao meu regresso de 2015.
Rui Mourão desenvolveu performances “artivistas” em Portugal, explorando um potencial transformador na arte que reaproxime a estética da ética, o eu do outro, a arte da sociedade. Os dois vídeos presentes na mostra focam-se nesse potencial transformador, entre o íntimo e o político, sempre por via do artístico.
Neste contexto diverso é importante ainda sublinhar que quando falamos hoje e quando se falava ao tempo da performance arte portuguesa há que dizer que se trata sempre de uma realidade que atravessa fronteiras. Os processos contaminaram-se, os referentes hoje e sempre foram misturados. Os performers portugueses sempre possuíram traços cosmopolitas, cruzaram fronteiras, partilharam ou criaram informação, como a mail arte, redes de afinidades e sentidos.
António Contador hoje faz esse cruzamento mais expressivo, entre Paris-Lisboa, cria lá e cá, produzindo performances que acentuam atravessamento de culturas. Ana Rito inscreve também o seu trabalho nesse movimento. Pedro Barateiro a par disso faz uma incursão por um dos eixos centrais da performance — o quotidiano — e mostra-nos essa ligação intrínseca entre arte e social na performance. Fernanda Eugênio & Ana Dinger criam um metadiálogo dessa história onde conceitos, autores, referentes se misturam.
Susana Chiocca, no Porto, conjuntamente com António Lago, criou a sala em 2007 dando espaço na sua casa para as suas performances e as de outros acontecerem. Ela apresenta-nos aqui registos da sua peça Europa e também o filme da sua performance Bitcho. Também no Porto, Rita Castro Neves havia criado em 2001 o festival de Live Arte Brrr, num tempo onde as novas gerações redescobriam aos poucos uma outra geração percursora. Fernando Aguiar, que nos anos 80 traduz a poesia visual numa corporização performativa, vai também organizar diversos encontros de performance: num desses encontros, em meados dos anos 90, denominado Acções Urbanas, que decorreu em Lisboa, deu-se conta que as novas gerações que enveredavam pelas práticas artísticas mais interdisciplinares desconheciam a geração que tinha ganho o nome de performance arte portuguesa, tornou-se urgente para ele dar a conhecer os catálogos que indiciavam essa história invisível do panorama artístico português.
Nesse mesmo processo, mais recentemente, surge em 2015 Reaction to Time de Vânia Rovisco, transmitindo para novas testemunhas e novos intérpretes performances históricas como Identification que Manoel Barbosa criou em Barcelona em 1975, ainda Espanha vivia o jugo ditatorial, e Il faut Danser Portugal, de António Olaio, de 1985.
Entre estas duas “gerações” (e, fazemos referência que este conceito é problemático uma vez que os artistas se entrecruzem em redes de várias gerações) outros grupos e “gerações” de artistas estão presentes como o colectivo O OLHO, liderado por João Garcia Miguel, onde se forma a dupla Ana Borralho e João Galante, entre outros, e antes ainda assiste-se a uma deriva da performance para a cultura pop mais mediática. Por exemplo, em finais da década de 80 surgiram novos grupos como os Homeostéticos, ou os Felizes da Fé que não foram integrados nesse mesmo movimento da performance, ainda que pudessem ser considerados herdeiros desse movimento. Seriam, por isso, muitos mais os nomes que deveriam ser contemplados nesta mostra e neste simpósio. Manuel João Vieira, Rui Zink, Alberto Pimenta, seriam alguns, para não falar de António Barros, que atravessou o campo da performance arte portuguesa, dialogou com os seus agentes mas criou as suas próprias artitudes. Fiquemos então com a imagem de Ernesto de Melo e Castro orquestrando uma pauta de música negativa para nos lembrarmos dos silêncios da história e para repensarmos o valor do arquivo da performance arte portuguesa.
Cláudia Madeira, Lisboa, Julho 2016