Refugiados: até os campeões podem fazer melhor
26 de Setembro de 2023, 13:54
Portugal é mesmo “um verdadeiro campeão” na defesa dos refugiados, como declarou há dois anos, Filippo Grandi, Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), em Lisboa? É verdade que “todos os indicadores internacionais apontam para o bom desempenho do nosso país no campo da receção aos refugiados, mas tal não significa a inexistência de pontos fracos e debilidades que convém identificar”, acrescenta Teresa Rodrigues, docente do Departamento de Estudos Políticos e coordenadora do estudo PPEACE – Políticas Públicas e Acolhimento de Cidadãos Estrangeiros, desenvolvido na NOVA FCSH.
O objetivo do trabalho coordenado pela também investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais foi o de “contribuir para o avanço científico na área das Políticas Públicas relativas ao acolhimento de nacionais de países terceiros (NPT), requerentes de asilo e refugiados, na Europa e em Portugal” através de uma reflexão crítica sobre o papel e eficácia das políticas públicas de acolhimento. Procurou-se também “sinalizar desvios entre a lei e a prática das políticas públicas de acolhimento de migrantes” sugerindo instrumentos que possam precaver os mesmos, avançam os autores do PPEACE. Isto porque “a investigação científica tem o dever ético de contribuir para a análise crítica e da identificação do que está bem e menos bem e apoiar os responsáveis pela tomada de decisões políticas”, avalia a docente, justificando um trabalho iniciado 2020 e desenvolvido ao longo dos últimos três anos.
O projeto encerrou agora com a publicação dos resultados e o (futuro) lançamento do livro “Proteção Internacional em Portugal. Um mundo em movimento”, inteiramente baseado no estudo. A publicação, que será colocada à venda já em outubro, “surge da vontade de informar e sensibilizar a sociedade civil para a complexidade inerente às migrações e para os inevitáveis riscos e desafios que lhe estão associados”, lê-se na contracapa.
O dia de hoje
O contexto atual dificilmente podia ser mais adequado ao desenvolvimento desta linha de investigação. Segundo estatísticas da ONU, a população mundial é hoje cerca de três vezes maior do que era na primeira metade do século XX: atingimos os 8 mil milhões em 2022, um novo marco de desenvolvimento humano, em comparação com os 2,5 mil milhões de pessoas que habitavam o planeta em 1950. Um século depois, em 2050, devemos atingir os 9,7 mil milhões, a maioria originária de África (+101%) e Ásia (+17%). Isto, claro, num cenário onde “a velha Europa continua a desempenhar o papel de um dos principais destinos dos migrantes internacionais”, considera o estudo, apontando uma ironia evidente: embora precisemos dos migrantes, “nomeadamente para mitigar alguns dos efeitos indesejados do processo de envelhecimento dos residentes”, o velho continente continua a ter “uma enorme dificuldade em gerir a questão migratória”.
A questão, tanto em Portugal como na Europa, é de ordem política. O próprio documento nota que, no nosso país, apesar de ter existido “nas últimas décadas um amplo consenso nacional relativo a estas temáticas e transversal aos partidos políticos”, esse entendimento está hoje ameaçado por uma “crescente normalização de um discurso alternativo anti migração e anti minorias”. De resto, ainda recentemente o Observatório do Racismo, coordenado pela Universidade NOVA de Lisboa, apontou haver “racismo estrutural em Portugal”, enquadrando-se num cenário de expansão da extrema-direita por toda a Europa.
Às elevadas pressões sociais adicionam-se, enumera o estudo, “alterações climáticas e conflitos armados”, fatores que continuam a provocar um grande número de migrantes forçados, e – convém recordar – “as consequências económicas da pandemia de COVID 19, que permanecem de contornos desconhecidos”. Certo é que existiu um aumento significativo de requerentes de asilo em território europeu a partir de 2014, o que evidenciou a existência de uma estratégia enfraquecida para o acolhimento e integração destas pessoas em território da UE, levando ao colapso do (desgastado) Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA).
O que diz o projeto?
“Consideramos que o PPEACE representa um contributo, ainda que modesto, para melhorar o conhecimento e consciência da sociedade sobre um grupo particularmente vulnerável, que deseja ter em Portugal um local onde viver de forma segura”, avança Teresa Rodrigues. Talvez até sejamos campeões na defesa dos direitos dos refugiados – afirmação validada pelas Nações Unidas – mas também vale a pena sublinhar que “há sempre espaço para fazer melhor”. O próprio projeto enumera como problemas o “excesso de burocracia e falta de resposta em tempo útil sobre os processos de proteção internacional, o atraso na implementação dos mecanismos de recolocação, que complexificam o acesso a serviços de saúde, contas bancárias, etc, a falta de diálogo e articulação entre os serviços (…) ou a escassa formação dos técnicos que reduz a qualidade do atendimento e das respostas”, só para enumerar alguns dos ‘outputs’ do projeto.
Outros resultados passaram pela realização de uma tese de doutoramento em Ciência Política com especialização em Políticas Públicas, uma tese de mestrado, a conceção de ‘Focus Groups” constituído por requerentes de asilo e refugiados, bem como profissionais e colaboradores de serviços públicos e privados e a realização de dois seminários internacionais destinados à reflexão, discussão e partilha de boas práticas na área das políticas públicas de acolhimento de migrantes, em Portugal e no estrangeiro.
Para já, “todas as previsões apontam para que o volume da população migrante mundial continue a aumentar num futuro próximo nas nações desenvolvidas, o que significa que lhes está reservada um crescente papel social, económico, político e cultural” nesses países. E se é verdade que “Portugal não tem uma procura considerável por parte de requerentes de asilo e refugiados, não deixa de existir uma real questão na receção e integração” destas pessoas. E são exatamente as suas dificuldades a que este trabalho dá destaque.
Do projeto nasce um curso Organizado por Teresa Rodrigues e com Ana Varela na qualidade de formadora, uma das atividades decorrente do projeto PPEACE teve lugar no Colégio Almada Negreiros na forma do curso “Acolhimento e integração de imigrantes e refugiados na Europa e em Portugal – Políticas públicas, da teoria à prática”. Primeiro inserido na edição de 2021 da Escola de Verão da NOVA FCSH, a formação teve 25h letivas, correspondente a 2,5 ECTS, e foi reconhecida como curso de formação para professores. Cada sessão foi objeto de um tópico específico e contou com um total de 12 participantes inscritos. Uma segunda edição decorreu já durante este ano, onde se abordaram todos os desenvolvimentos ocorridos desde a data do primeiro curso, em particular as consequências da guerra na Ucrânia. Ainda em 2021, um workshop conduzido pela equipa de investigação também permitiu que 30 participantes refletissem sobre políticas públicas de acolhimento de refugiados, assim como os desafios colocados pela COVID-19. |