“A Faculdade não deve ser uma redoma”

As instituições de ensino superior “devem ligar-se à solução de problemas reais. Devemos colocar essa capacidade ao serviço de todos, a Faculdade não deve ser uma redoma”, defende José Lúcio, docente do Departamento de Geografia e Planeamento Regional. O contexto é o trabalho em associação com a Câmara Municipal de Lisboa (CML) elaborado pelo docente com a participação direta das estudantes da NOVA FCSH Carlota Vilaça e Sofia Mariano. Com o fim da vigência do plano, tornou-se necessário aprender com a experiência, avaliar os pontos positivos e negativos através de um relatório final que “pressupunha uma avaliação externa”, explica. Em reconhecimento do mérito científico da Faculdade e estudantes, a autarquia escolheu exatamente a NOVA FCSH para produzir esse documento, entregando a coordenação do trabalho a José Lúcio.

Por diversas condicionantes, “até à data nunca tido desenvolvido a nível municipal um trabalho de auscultação aos sem-abrigo. O que existia eram apenas amostragens”, explica o docente. Portanto, “o que foi feito foi chegar à fala” com os diversos intervenientes – população sem teto, sem casa e stakeholders (por exemplo, instituições de solidariedade). Para distinguir as duas primeiras categorias importa saber que, há cerca de 5 anos, a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo introduziu antes o termo Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PSSA) como forma de  destacar uma “condição transitória” que “resulta de um conjunto de fatores sociais, económicos e individuais que devem ser abordados de forma integrada”, justifica o documento. Portanto, sem teto ou sem casa, será sempre uma PSSA.

Aprofundando o papel da NOVA FCSH, este consistiu em realizar “entrevistas aos diversos atores que lidam com PSSA”, no sentido de “tirar uma radiografia à situação” e tratar os dados estatísticos, clarifica José Lúcio. O objetivo foi “chegar a um número de inquéritos estatisticamente relevantes”, tendo o estudo conseguido chegar “aos 95% de confiança”. Este valor, inédito e relevante pela inconstância desta população, só foi possível atingir “com a ajuda da CML”, que disponibilizou toda a ajuda e experiência necessária, sublinha. E qual a importância disto? É que agora a autarquia “ficou com um instrumento que lhe permite comparações futuras”, que entende como “uma útil herança que ficará ao dispor da autarquia”. Ainda segundo a própria CML, este é mesmo “o elemento de maior originalidade e valor de todos os trabalhos incluídos no exercício avaliativo”, declara o próprio documento. Mais, “o esfoço (…) representou um momento inovador no âmbito dos estudos e pesquisas que se têm vindo a desenvolver na temática alargada das realidades associadas a situações de sem-abrigo”.

Sugestões para o futuro plano

Mais do que apenas trabalho estatístico, o papel da equipa da NOVA FCSH passou também por “desenvolver uma leitura cuidada da implementação das medidas/respostas contidas no Plano [anterior], procurando inferir as razões do sucesso e, em determinados casos, os motivos que explicam o não total alcance das metas estabelecidas para certas iniciativas”.

Nas sugestões, a Faculdade aponta como essencial adotar uma abordagem integrada que considere tanto o acesso a alojamento, quanto a sua inserção no mercado de trabalho, pois “o cidadão sem-abrigo tem consciência que a mudança da sua situação irá depender, em larga margem, da resolução de dois problemas essenciais, a saber: um local para viver e uma fonte estável de gerar rendimentos”, sublinha o documento. Assim, o reforço do eixo da “inserção/autonomização” deve ser uma prioridade, com foco em iniciativas como a “criação de bolsas de emprego”, que até já estão previstas no plano anterior.

A elevada taxa de desemprego nesta população, situação de “88% daqueles que responderam ao inquérito”, reforça a necessidade de respostas que promovam a “formação profissional/escolar e posterior inserção no mercado de trabalho”. Assim, o próximo plano deve apontar para setores com maior capacidade de gerar emprego, como “construção civil, restauração e hotelaria”, áreas que representam oportunidades concretas. Estabelecer “protocolos ou acordos de cooperação” com empresas desses setores pode ser uma estratégia eficaz para promover a empregabilidade, sugere-se. Também é fundamental combater os “tempos de permanência consideráveis em vivência de rua”, sendo esse um fator importante para “romper com o círculo vicioso de fragilidade/dependência/pobreza/exclusão” destas pessoas. Tudo problemas ‘do mundo real’, que o conhecimento da Faculdade contribui para atenuar.

As estudantes também estiveram lá!

“Todas as expetativas foram cumpridas”, atira sem hesitação José Lúcio, sobre o trabalho de Carlota Vilaça e Sofia Mariano, que conhecem o estudo da NOVA FCSH bem de perto. Trata-se de duas estudantes da NOVA FCSH, respetivamente da licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais e Geografia e Planeamento Regional, que tiveram por objetivo “o mapeamento dos dados”, organizando-os, por exemplo, “por sexo, idade, toxicodependência, etc.”, explicam. Como parte mais positiva da sua experiência referem a “motivação para por em prática aquilo que já aprendemos e logo num projeto tão interessante”, que as ajuda a “trazer mais coisas para a licenciatura”, referem a propósito do conhecimento adquirido. Ambas concordam ser “importante haver mais pessoas sensíveis para a causa dos sem-abrigo” e, no caso da Carlota, a motivação extra também serviu para se inscrever como voluntária no Centro de Apoio ao Sem Abrigo – CASA.

“Não se deve esperar pelo fim da licenciatura para envolver um estudante que já tem essas capacidades”, defende José Lúcio, até porque “a meio da formação muitos já têm essas competências técnicas, científicas e humanas”. Neste projeto em particular, não se cansa de repetir que “a CML ficou extraordinariamente satisfeita com o trabalho das nossas estudantes”. Claramente, o professor também.

Ao centro, em cima: Carlota Vilaça, José Lúcio e Sofia Mariano

 

Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo em Lisboa

Segundo dados recolhidos no estudo da NOVA FCSH “constatou-se que o número total de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PSSA) na cidade de Lisboa era de 3138. Estavam na condição de sem casa 2744 pessoas e sem teto 394 pessoas”, distingue o documento entregue à autarquia. No geral, apresentam um perfil predominantemente masculino, de origem portuguesa (82%), solteiros ou divorciados, e apresentam idades em torno dos 60 anos.

Embora mantenham características “clássicas” associadas à população sem-abrigo, um dado relevante emerge: “quase 30% dos inquiridos possui habilitações secundárias ou até superiores”, situação criada pelo “novo padrão de emigrantes que chega ao nosso país em busca de uma oportunidade de vida”, avança o documento. O desemprego afeta 88% dos inquiridos, enquanto 1/3 encontra-se sem-abrigo há mais de três anos, fator que tende a dificultar a reinserção e autonomização.

Geograficamente, os PSSA têm um “comportamento particular” na cidade, com permanência noturna em locais como Parque das Nações, Santa Apolónia e Arroios, “em lugares próximos de estações ferroviárias (Santa Apolónia ou Oriente)”. Durante o dia, é comum que circulem pela cidade, “mas também percorrem as ruas da capital, revelando uma mobilidade geográfica talvez ditada pela necessidade de encontrar/procurar respostas para a sua situação”. As principais carências identificadas incluem alojamento e emprego, sendo que muitos destacam a necessidade urgente de um espaço para dormir, ainda que provisório, como ponto de partida antes de uma solução habitacional definitiva.

No campo da saúde, enfrentam patologias diversificadas como problemas respiratórios, cardíacos, oftalmológicos e consumos aditivos, com destaque para o álcool (19%).

 

 

 

Aprovado o Plano Municipal para as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PMPSSA) 2024-2030

O Plano Municipal para as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PMPSSA) 2024-2030, onde se define um investimento de 70 milhões de euros ao longo dos próximos seis anos, organiza-se em torno de 23 objetivos concretizados através de 89 medidas. Entre as iniciativas mais relevantes está a expansão do programa “Housing First”, que pretende alcançar 800 vagas até 2025, duplicando as atuais 400, afirma a o município de Lisboa. Inclui também a criação de uma equipa técnica multidisciplinar para assistência direta às pessoas em situação de rua, com foco em áreas como saúde, tradução e respostas de emergência.

O plano contempla ainda o aumento de infraestruturas de apoio para o PSSA, como centros de alojamento temporário e espaços de transição, além da criação de soluções habitacionais personalizadas que promovam a autonomização gradual, aponta a Câmara Municipal de Lisboa no seu website.

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